São Paulo, 7 de setembro de 1822. A cidade no dia da Independência

Com a Casa da Ópera lotada, Dom Pedro era aclamado o primeiro rei do Brasil.

A noite de 7 de setembro de 1822 foi de festa para os moradores da pequena cidade de São Paulo. Apenas algumas horas antes, quando retornava de Santos, o Príncipe Regente Dom Pedro de Alcântara havia proclamado a Independência do Brasil. Com a Casa da Ópera lotada, Dom Pedro era aclamado o primeiro rei do Brasil.

Em 1822, os limites de São Paulo eram bem mais estreitos: a cidade propriamente dita se estendia do Largo de São Bento ao de São Gonçalo (praça João Mendes) e da rua Nova de São José (Líbero Badaró) à de Santa Teresa (do Carmo), até a Tabatingüera, na área que compreende o delta dos rios Anhangabaú e Tamanduateí. A cidade tinha menos de 10 mil habitantes. Um lugar muito diferente da gigantesca metrópole dos dias de hoje.

Alguns locais, como a Sé e os largos de São Francisco e São Bento, mantém a mesma nomenclatura daquele tempo. Outros, porém, mudaram de nome. Casos, por exemplo, da rua do Rosário, hoje XV de Novembro, Becco da Cachaça e rua do Cotovello, hoje rua da Quitanda e Beco do Inferno, hoje rua do Comércio.

Mas a cidade já começava a ampliar seus horizontes. Novas residências se distribuíam ao longo da rua de São João Batista (atual avenida São João), ao longo da rua do Piques (Consolação), do caminho para Santo Amaro, no Brás, em Santa Ifigênia e na Luz.

Durante cerca de dois séculos, a cidade havia sido um importante ponto de partida das bandeiras, fossem elas para o norte, para o oeste ou para o sul. No entanto, o ciclo das bandeiras se esgotara e São Paulo estava estagnada. Muitos de seus habitantes deixaram a cidade para ir procurar ouro em Minas Gerais.

O viajante e botânico francês Auguste de Saint-Hilaire, que visitou o Brasil inteiro e esteve em São Paulo em 1819 e em 1822, ficou muito admirado com a cidade, dizendo ser a mais bela que conheceu em suas andanças pelo Brasil. Mas afirmava também que “a cidade de São Paulo mais não é do que um centro de depósito de mercadorias da Europa e de trânsito para os produtos do país; é-lhe indispensável o porto de Santos, o qual poderia, em rigor, dispensá-la. São Paulo nunca teria sido, certamente, mais florescente do que Santos, se não se tivesse tornado a capital da Província e a sede residencial de todas as autoridades civis e eclesiásticas”. Tão pacata era a cidade que, conta o viajante, era possível aos presos que ficavam na cadeia junto à Câmara Municipal conversar com os transeuntes.

Se as diferenças entre a cidadezinha e a metrópole são óbvias, não há como negar certas semelhanças entre elas. Mesmo alguns dos problemas enfrentados hoje, já eram sentidos naquela época. Como a falta de planejamento, por exemplo. Assim, conta o historiador Affonso A. de Freitas, o carpinteiro Francisco Gomes Tavares, nomeado arruador da cidade em 1753, reclamava dos “inconvenientes das ruas, e becos, que deveriam ser direitos, estarem todos sem ordem por falta de haver um oficial arruador”, conforme consta do documento que promoveu sua nomeação.

A saúde também já era uma preocupação dos paulistanos. Sete médicos atendiam a cidade. A única instituição oficial para tratar os doentes era o hospital militar. A enfermaria da Santa Casa de Misericórdia, que existia desde 1715, mantinha em tratamento muitos escravos enfraquecidos pela travessia do Atlântico, e freqüentemente a Santa Casa ficava sobrecarregada. Na Luz, a Santa Casa mantinha um lazareto, para quarentena de suspeitos de lepra, que também eram mal assistidos.

Além dos problemas existentes, o crescimento populacional também representava ameaça à comunidade. De acordo com Richard Morse, “durante a maior parte do século XVIII, São Paulo e suas paróquias rurais contavam apenas 2.500 a 4.000 habitantes; em 1790 havia mais de 8.000 e na década de 1820 , mais de 20.000”. Isso, somado à questão do recolhimento do lixo – sim, naquela época, o lixo já dava dor de cabeça... -, aumentava o risco de que doenças proliferassem na cidade. Também a água já gerava alguns inconvenientes, tanto durante as secas, que prejudicavam o abastecimento, como durante as chuvas, que causavam enchentes.

Segundo Affonso A. de Freitas, os paulistanos da época da independência eram bastante religiosos e, para provar isso, cita as 14 igrejas existentes no perímetro da cidade, as numerosas procissões e terços, e os oratórios públicos. Mas cabe aqui a ressalva feita pelo historiador Richard Morse. Ele conta que “a igreja em que a missa fosse rápida e ininteligível seria a mais popular.

A repentina atração que exerceram certa vez as cerimônias realizadas na velha igreja dos jesuítas teve sua explicação na beleza das duas filhas gêmeas do presidente da Província”. Segundo ele ainda, o nível do baixo clero paulistano era muito ruim: “os padres não se notabilizavam nem pelo celibato, nem pela erudição, nem pela dignidade pessoal”.

As famílias que habitavam a cidade eram hospitaleiras e, mesmo entre os mais abastados, imperava uma austeridade que contrastava com o luxo que depois se viu com a cultura do café. À noite, os principais divertimentos eram a música, a dança, a conversação e o jogo.

Era freqüente que as mulheres não se mostrassem nem mesmo à mesa. Com apenas 13 ou 14 anos as moças já se casavam. Também o vestuário era discreto e era comum que, em dias de procissão, os escravos usassem as jóias que as senhoras não podiam usar para preservar sua austeridade.

“É revelador este fato”, diz Morse, “Significa que as ruas, alamedas e praças da cidade, todas as suas áreas de circulação e reunião pública, estavam de posse dos escravos – que constituíam mais de um quarto da população – e de homens livres humildes: tropeiros, vendeiros, lavradores. As famílias patriarcais viviam retiradas em seus sobrados”.

Talvez venha da liberdade experimentada nas ruas uma outra vocação de São Paulo: a boemia. Como observou Saint-Hilaire: “é incontestável que logo após o pôr do sol vêem-se nas ruas muito mais pessoas do que durante o dia; ficam as mesmas repletas de homens e de mulheres que andam à procura de aventuras”. E, mais adiante, afirma: “Em nenhuma parte do mundo por mim percorrida vi tamanho número de prostitutas”.

Mas, naquela noite de 7 de setembro, as pessoas que estavam na rua celebravam a recém conquistada independência do Brasil – o ápice de uma luta que envolveu muitos brasileiros ao longo dos séculos. E mais especificamente, o resultado de um movimento que se iniciara em 1808.

Naquele ano, a família real e a corte portuguesa chegaram ao Brasil, fugindo das guerras napoleônicas (1805-1815). Com isso, o Brasil passou a ser a sede do império português e obteve uma série de privilégios que não tinha na condição de colônia. O principal, certamente foi a abertura dos portos para as nações amigas. Uma série de progressos se tornou possível durante esse período, como uma maior abertura cultural, o estímulo às manufaturas e o surgimento da imprensa.

Em 1815, o príncipe regente Dom João VI elevou o Brasil à categoria de Reino Unido a Portugal e Algarve. Uma medida para que a corte não tivesse que regressar a Lisboa – e para levar adiante o projeto de expansão do império. O país ganhava em importância diante do mundo. Mas, a Revolução do Porto, em 1820, que impôs o fim do absolutismo a Portugal, acabou forçando Dom João VI a regressar àquele país.

Apesar das vantagens obtidas pelos brasileiros, a relação com os portugueses nunca haviam sido muito boas. É conhecido o episódio ocorrido após o desembarque da corte no Brasil, quando as melhores residências de brasileiros foram ocupadas pelos portugueses. Além disso, a cobrança de impostos era considerada abusiva pelos brasileiros, o que fez eclodir diversos conflitos pelo país. O mais sério deles, a Revolução Pernambucana, patrocinada pela indústria açucareira.

Com o retorno da família real a Portugal, em 1821, o Brasil acabou perdendo o posto de Reino Unido. O sentimento de revolta crescia nas diferentes províncias. Dom Pedro, herdeiro do trono português, estava empenhado em apaziguar esses conflitos, buscando evitar uma ruptura entre Brasil e Portugal, e fazia esforços para que o Brasil voltasse à sua condição anterior.

Ao mesmo tempo, buscava se fortalecer politicamente para resistir à pressão que Portugal fazia pelo seu retorno. A viagem que fez à Minas Gerais, em abril de 1822, teve esse objetivo e esse efeito. No entanto, em São Paulo as coisas acabaram tomando outro rumo.

A cidade, que já era então a capital da província, passava por uma disputa política tensa. Em 1821, inspirado pela Revolução do Porto, o grupo liderado pelos irmãos Andrada - José Bonifácio de Andrada e Silva, Martim Francisco Ribeiro de Andrada e Antônio Carlos Ribeiro de Andrada Machado - assumiu o poder em São Paulo. João Carlos Augusto de Oyenhausen foi escolhido presidente da província e José Bonifácio de Andrada e Silva, vice-presidente. No final daquele mesmo ano, José Bonifácio foi recebido pelo príncipe regente e os dois tornaram-se aliados. Em janeiro de 1822, José Bonifácio foi nomeado ministro de Dom Pedro.

Em maio de 1822 eclodiu o movimento que ficou conhecido como Bernarda de Francisco Inácio. Dom Pedro, próximo aos irmãos Andrada, ordenou que Oyenhausen entregasse o cargo e comparecesse na corte. O novo presidente seria Martim Francisco. Francisco Inácio de Souza Queiroz, adepto do presidente deposto, liderou um movimento para impedir a saída de Oyenhausen. Oyenhausen permaneceu à frente do governo até 21 de julho, quando as tropas da praça de Santos foram enviadas a São Paulo.

Quando Dom Pedro chegou em São Paulo, em 25 de agosto de 2005, era nesse estado de ânimos que a cidade se encontrava. Os membros do governo que se mostravam adversos à política andradista foram desterrados e Dom Pedro assumiu o governo da província. A 5 de setembro partiu para Santos, para inspecionar suas fortificações.

No caminho de volta para São Paulo, às quatro e meia da tarde do dia 7 de setembro, às margens do riacho do Ipiranga, nos arredores de São Paulo, ele encontrou um mensageiro que trazia notícias da Corte Portuguesa, exigindo, entre outras coisas, o retorno do príncipe a Portugal. Também constavam cartas de José Bonifácio e de Leopoldina, sua esposa, aconselhando-o a proclamar a independência, o que efetivamente foi feito naquele momento. À noite, na Casa da Ópera, em São Paulo, foi aclamado rei. Os paulistas se declararam, desde aquele momento, fiéis ao príncipe, dando-lhe também apoio armado.

A rigor, o novo governo não mudou muita coisa para a grande maioria das pessoas. Para os paulistas, significou uma crescente importância na política nacional. A cidade iniciou ali também seu progresso, um pouco lento a princípio. Ainda na década de 1820, surgiu a imprensa paulistana e foi fundada a Academia de Direito.

Aos poucos, São Paulo deixaria de ser a pequena cidade provinciana para se tornar uma metrópole pulsante e, como já o foi naquele momento, decisiva para a política nacional. E, ainda que não tenha sido a ruptura desejada pela maior parte do povo brasileiro, foi o início da caminhada para construir a nação – caminho, que, apesar de tantos obstáculos, os paulistanos continuam trilhando.