São Paulo, onde a periferia segue sangrando

Aqui na zona sul o feminismo tem que fazer curva e adentrar no imenso caldeirão de complexidades que formam esse espaço

Fonte: Desinformémonos  | Texto: Carolina Teixeira

 

Foto: Marcelo Aguilar

 

“Suburbana aprendi a renunciar à lua cheia.
Quem me ilumina: essa luz fria, o pipôco, o freio do busão.
Preencho e escorro pelas marés da cidade”.

ÚteroUrbe

(Útero escancarado urbano urgente ancestral poético vermelho violento maloqueiro enraizado político delicado)

 

Um dia, ao grafitar um útero no muro da vila em que moro, uma mulher me abordou. Estava um pouco alcoolizada e me observava atentamente, um pouco tombando para o lado. Perguntou o que eu estava desenhando, e respondi que era aquilo mesmo, aquele órgão que toda mulher tem. Ela sentou, e com real compadecimento olhou pra mim e disse: “Nossa, você deve ser uma pessoa triste... traumatizada. Conta fia, você perdeu um filho, que aconteceu?”.

Há aproximadamente três anos tenho perseguido e encontrado, deixado escapar e perseguido novamente o território-útero. Chamo de território pois estou encarando aqui o útero como lugar de disputa na sociedade, espaço alienado do corpo feminino e dizimado do imaginário social. De potência que é, virou terra seca. Infertilidade. Aborto. Acredito que todo ser vivente possua um útero alienado e não só nós, mulheres. Mas aqui, de dentro desse corpo, busco a reintegração de posse - dentro do meu ventre e em cada viela que passo.

Perseguindo o útero, andei por algumas cidades em um processo que chamei de resistência artística (em alusão à expressão “residência artística”) me encontrando com outras mulheres, bichas, homens, transexuais, lésbicas, crianças e velhas e compreendi que é cada vez mais distante pensar que somos mulheres por um dom divino ou porque a natureza fez assim. Além de nossa profunda identidade, somos diversas, temos histórias e cores de pele diferentes e nem sempre o mesmo número de buracos na cabeça.

Essas pessoas que conheci contaram memórias do seu corpo ao mesmo tempo que iam mapeando os escadões e avenidas, os lugares proibidos de descansar e andar de noite. Muito silêncio e muito pixo veio à tona. Filhas de outras ruas. Nos encontros, criamos a cartografia que ia aos poucos desvelando pra nós todo um feixe de relações que iam da unha do pé à rua da infância, da violência escolar ao suor do corpo.

Estupros, muitos estupros e proibições. Desapropriações e privatizações. De dentro do corpo a cidade se abre, e em toda esquina o corpo se refaz. No processo de fim do silenciamento e da vergonha a voz sai e, no encontro com outras mulheres, se torna pública. A voz feminina no espaço público inventa outro corpo para nós. Outra cidade. Mira a revolução.


Periferia sul de São Paulo, 6 de março de 2016 - Dezenas de mulheres caminham pelas ruas do Jd. Ibirapuera em um encontro que chamamos de Periferia Segue Sangrando e que já está em seu segundo ano. Ao mesmo tempo em que lemos o manifesto com ajuda de um megafone, os moradores saem na janela, as motos pipocam o carburador, a igreja evangélica sempre lotada. O cortejo de maracatu é barulhento e alegre, atrás de nós um rastro de tinta vermelha marca todos os lugares que passamos. No ponto de ônibus, grande em letra de fôrma, uma mulher negra deixa a pixação demarcando seu território: PRETA, SEU CABELO É LINDO!

Aqui na zona sul o feminismo tem que fazer curva e adentrar no imenso caldeirão de complexidades que formam esse espaço. Sabemos que qualquer feminismo cara-pálida aqui seria mera representação ou reprodução de uma discussão que descende de outras matrizes, outras realidades bastante diversas.

No genocídio em curso no Brasil promovido pelo Estado e que mata centenas de negros todos os anos, a mulher periférica sabe, do fundo do seu útero, que o próximo filho assassinado pode ser o seu. Pois entende-se do lado de cá que os homens não são todos iguais. Um homem negro e periférico, indígena, favelado não é o mesmo homem que frequenta os grandes centros do capital ou dos acessos a tudo.

Sabemos que a violência obstétrica mata e mutila a mulher de pele negra, pois é cultural por aqui que essa mulher é o tipo que não pode tombar, ser frágil nem pensar. Sabemos que abortar na periferia tem outras variáveis de quem pode pagar uma clínica cara, e andar nas ruas sem iluminação, crescer em famílias destruídas pela falta de perspectiva ou aprender em escolas que são verdadeiras prisões é um processo árduo e que mutila todos os dias e sistematicamente os corpos. Estupro. Aborto. Infertilidade.

Com o compromisso político de quem persegue a invenção da sua própria forma de conhecer e agir, e de quem não pode se dar ao luxo de separar a vida teórica da vida cotidiana sem correr imensos riscos, estamos buscando fazer o caminho inseparável entre nossa subjetividade e nossa ação estrutural no mundão. É um olho no peixe outro no gato. Se alguma dessas perspectivas se distancia, a outra fica capenga.

Então partimos, daqui da zona sul, da nossa experiência mais subjetiva e corporal, mais íntima e particular, contra o fato consumado e frio de que cada cabeça periférica é um número na estatística. Isso significa - já que assumimos politicamente que existimos - deixar sair o pus e toda inflamação de traumas ancestrais, de cicatrizes vindos da Casa Grande e das memórias mais profundas. Deixar vir o ônibus lotado, o desemprego, o soco na cara do homem que amo ou a perda do feto, deixar vir... para olhar, jogar luz, curar.

Inventar novas subjetividades, atravessar abismos e fechar círculos viciosos tem sido nossa construção de horizonte no mapa das relações que se estabelecem no fazer e compartilhar histórias com outras mulheres. Tecemos o mapa, nele nos inserimos e dessa coletividade brota algum tipo de força ou florescimento, um broto vulnerável e comunitário, às vezes violento e desajeitado, da retomada de nossas vidas de uma maneira mais íntegra e criativa. Eita palavra difícil, criativa. 

Continuemos: aos poucos, um revide. Esse revide ganha cor e expressão na nossa coletividade que busca transformar também nossa vida pública. A rua agora é nossa morada, demorô, e dela também queremos respostas. Pois se nos comprometemos a traçar o caminho das nossas intimidades mais silenciadas, fazer nossa própria estratégia de luta é assumir as consequências dessas transformações no dia a dia e nos espaços que frequentamos em solidariedade com as outras manas.

O “Periferia Segue Sangrando” é aquelas explosões de sentido, em que uma coisa quer dizer duas coisas opostas ao mesmo tempo e agora. Para nós portadoras de um útero nenhuma novidade, sentir alívio em sangrar todos os meses e odiar esse sangue que nos machuca.

A periferia de São Paulo segue sangrando pelo genocídio que mata a tiros nossos adolescentes e silenciosamente pelos ladrões de merenda. Esse sangue nós não queremos mais. Porém, do alto da reintegração de posse de nossos corpos e armadas de nossa teia de solidariedade, gritamos nossa fertilidade e úteros vivos, esse sangue que é nosso e traz saúde e benção para nós e as futuras gerações: Periferia Segue Sangrando e não estanca!