Milton Hatoum escreve sobre Programa de Urbanização de Favelas da Sehab no ‘Estadão’

Leia a íntegra de artigo do escritor Milton Hatoum, publicado no jornal “O Estado de S.Paulo” no dia 28 de agosto, sobre o Programa de Urbanização de Favelas da Secretaria Municipal de Habitação:

Moradia e (In)dignidade

Por Milton Hatoum

Nos anos 70, quando eu estudava na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP), um dos poemas mais lidos e comentados por estudantes e professores era “Fábula de um arquiteto”, de João Cabral de Melo Neto.

“O arquiteto: o que abre para o homem
(tudo se sanearia desde casas abertas)
portas por-onde, jamais portas-contra;
por onde, livres: ar luz razão certa.”

Esses versos pareciam nortear a concepção e a organização do espaço, trabalho do arquiteto. A utopia possível de vários estudantes era transformar habitações precárias (eufemismo para favelas) em moradias dignas. O exemplo mais famoso naquele tempo era o Conjunto Habitacional Zezinho Magalhães Prado (Parque Cecap) em Guarulhos. Esse projeto de Vilanova Artigas era um dos poucos exemplos de habitação social decente, mas seus moradores não eram ex-favelados.

Em geral, a política de habitação popular no Brasil consiste em construir pequenos e opressivos apartamentos ou casas de baixo padrão tecnológico, sem senso estético, sem relação orgânica com a cidade, às vezes sem infraestrutura e longe de áreas comerciais e serviços públicos. Vários desses conjuntos são construídos em áreas ermas, cuja paisagem desoladora lembra antes uma colônia penal. Isso ocorre de Norte a Sul do País. Em São Paulo, os Cingapuras são verdadeiras aberrações arquitetônicas, que subtraem do ser humano toda dignidade relacionada à cidadania. É como se uma família pobre saísse da favela e ocupasse uma espécie de abrigo, não lugar para morar.

Mas há mudanças e avanços significativos na concepção de projetos de habitação social, infraestrutura, lazer e paisagismo, projetos que, afinal, dizem respeito à democracia e ao fim da exclusão social. Um desses avanços é o trabalho da Usina. Fundada em 1990 por profissionais paulistas, a Usina tem feito projetos de arquitetura e planos urbanísticos criteriosos e notáveis. Trata-se de uma experiência de autogestão na construção, cujos projetos, soluções técnicas e o próprio processo construtivo são discutidos coletivamente, envolvendo os futuros moradores e uma equipe de arquitetos, engenheiros e outros profissionais. Há outros projetos relevantes que apontam para soluções inventivas.

Acompanhei jornalistas do “Estadão” em visitas a conjuntos habitacionais em Heliópolis e na Billings, onde está sendo implantado o Programa Mananciais. Em Heliópolis, Ruy Ohtake projetou edifícios em forma cilíndrica, daí o apelido de redondinhos. A planta dos apartamentos de 50 m² é bem resolvida, os materiais de construção e o acabamento são apropriados, todos os ambientes recebem luz natural. Esse projeto de Ohtake e o de Hector Vigliecca (ainda em construção) revelam avanço notável na concepção da moradia para camadas populares. Mostram também que é possível e desejável enterrar de vez os vergonhosos projetos Cingapura e Cohab dos anos 1980 e 1990.

Um dos projetos do Programa Mananciais é uma ousada e bem-sucedida intervenção urbana numa das áreas mais pobres e também mais belas da metrópole. Situado às margens da Represa Billings, o Parque Linear (que inclui o Residencial dos Lagos e o Jardim Gaivotas) é, em última instância, um projeto de cidadania que contempla milhares de famílias. Não por acaso esse projeto da equipe do arquiteto Marcos Boldarini recebeu prêmios no Brasil e no exterior.

Além do enorme alcance social, o projeto foi pensado para preservar a Billings e suas espécies nativas. Penso que a realização dessa obra de engenharia e arquitetura é marco do urbanismo brasileiro. Sem ser monumental, o Parque Linear é uma obra grandiosa e extremamente necessária, concebida com sensibilidade estética e funcional que dá dignidade a brasileiros que sempre foram desprezados pelo poder público. É também um exemplo de como os governos federal, estadual e municipal podem atuar em conjunto, deixando de lado as disputas e mesquinharias político-partidárias.

Além de arquitetos e engenheiros competentes, o Brasil possui recursos para financiar projetos de habitação popular em larga escala, como prova o Minha Casa, Minha Vida. Mas é preciso aliar vontade política a uma concepção de moradia que privilegie a vida dos moradores e sua relação com o ambiente e o espaço urbano. Já é tempo de acabar com edifícios-pombais e casas-cubículos, que mais parecem abrigos asfixiantes, construídos com materiais de quinta categoria e péssimo acabamento. A sociedade e o Estado brasileiro podem e devem reparar essa injustiça histórica e dar a milhões de brasileiros pobres moradia humana, não abrigo ou teto. Porque morar é muito mais que sobreviver em estado precário e provisório.