Secretaria Municipal de Cultura e Economia Criativa

Informativo 45

Cultura, política e assistência: reflexões sobre a história de São Paulo

A presente edição do Informativo do AHM traz três textos vencedores do Edital de Concurso nº 20/2024 – SMC/AHM - Informativo Arquivo Histórico de São Paulo, que exploram diferentes aspectos de figuras e instituições ligadas à história da administração pública em São Paulo.  

O primeiro texto “A Revista do Arquivo Municipal e o Governo da Cidade: Continuidades e Descontinuidades do Projeto Modernista”, investiga o papel da RAM como instrumento do projeto modernizador da Prefeitura de São Paulo durante os anos 1930. A partir da análise das edições de números 1 a 48, o artigo mostra como a revista esteve no centro das disputas políticas e culturais da época: desde sua criação pelo Departamento de Cultura e Recreação, sob direção de Mário de Andrade, até as mudanças editoriais provocadas pelo Estado Novo. O texto evidencia as tensões entre inovação e conservadorismo nas políticas culturais paulistanas, bem como os esforços de construção de uma identidade urbana por meio da valorização da história e da memória da cidade. 

Já a pesquisa, “Rubens Borba de Moraes e os Ideais de Formação para a Administração Pública da Cidade de São Paulo”, investiga a atuação de Rubens Borba de Moraes tanto no cenário intelectual – com sua paixão pelos livros e bibliotecas – quanto na administração pública da cidade de São Paulo. O artigo aborda a passagem de Rubens Borba pela Prefeitura de São Paulo, onde atuou como diretor do Departamento de Bibliotecas no Departamento de Cultura, e também foi secretário da Revista do Arquivo Municipal (RAM). A pesquisa examina como seus ideais, ligados a um sentimento nacionalista associado ao Modernismo, dialogam com um olhar internacionalista, voltado para a formação de uma identidade cultural brasileira, e como esses valores influenciam sua atuação na administração pública paulistana. 

Por fim, o terceiro texto desta edição, “As fotos do primeiro albergue noturno de São Paulo”, que foi criado no início do século XX, para oferecer abrigo temporário a pessoas em situação de vulnerabilidade social. A partir de uma leitura sensível dos registros fotográficos de 1957, João Gomes da Silva Filho conta a história do albergue, que conforme foi estabelecido em seu estatuto, era uma corporação beneficente da qual todos, independente de sexo, nacionalidade, crenças políticas e religiosas, poderiam fazer parte. Em um contexto de precarização do trabalho urbano, crescimento das cidades e a falta de políticas públicas sociais, o albergue surgia como solução para aqueles indivíduos marginalizados, que não tinham lugar para passar uma noite.  

 

A REVISTA DO ARQUIVO MUNICIPAL E O GOVERNO DA CIDADE: CONTINUIDADES E DESCONTINUIDADES DO PROJETO MODERNISTA  

Marcela Vaz da Silva  
Sueli Soares dos Santos Batista
  
(Centro Estadual de Educação Tecnológica Paula Souza) 

 

Introdução 

A pesquisa em rede de que deriva este texto considera os grandes debates sobre os rumos da cultura no Brasil, os quais potencializaram o trabalho intelectual de um grupo cujos membros foram nomeados dirigentes das diferentes seções do Departamento de Cultura e Recreação (DCR) da Prefeitura de São Paulo, 1935-1938, sob o governo do prefeito Fábio da Silva Prado1.  

As concepções de Modernidade construídas por intelectuais intérpretes do Brasil dialogam com as experiências modernistas na busca de soluções e projetos que resultaram na experiência do DCR. Nas primeiras décadas da República, o fordismo e o positivismo chegam ao Brasil como marcas de uma modernização conservadora, da racionalização do trabalho, da ordem social e do progresso, as quais são mescladas com práticas respingadas pelas capitanias hereditárias e pelo latifúndio. Trata-se da industrialização da periferia como considerou Hobsbawn citado por Gilberto Dupas (1999). Alves (2002) afirma, a partir dessas observações, que não havia na república nascente nenhuma reflexão sobre as mediações entre a brutalidade colonial escravista e um suposto regime efetivamente republicano.  

Ao abordar as concepções das relações entre sociedade, Estado, cultura e educação no contexto brasileiro,  intérpretes do Brasil como Sérgio Buarque de Holanda, Caio Prado Jr. (1966), Florestan Fernandes (1989), Celso Furtado (1984) e Alfredo Bosi (1993) são importantes para compreendermos os desafios para a educação e a cultura em meio à nossa experiência colonial e escravista, ao nosso desenvolvimento industrial. É o que se observa como uma obsessão do descompasso para um país que, mergulhado no pensamento colonial, procura desde que se entendeu como nação as formas de superação do seu atraso. 

Nos limites desse artigo trabalha-se com  as primeiras edições da Revista do Arquivo Municipal (RAM). Foram selecionados dos 13 primeiros números que constituem um corpus documental revelador das abordagens que precedem a criação do DCR. Outra parte do corpus documental se refere a  números da revista que demonstram pontos de inflexão de natureza política e institucional em decorrência da saída de Mário de Andrade e mudança na condução editorial da Revista. Essa segunda parte do corpus documental é composta pelos números 14 a 48, sobretudo no que diz respeito à chegada do Estado Novo em 1937 e às  mudanças significativas na cena política paulista e nacional. 

 

A Revista do Arquivo Municipal e sua relação com a formação do DCR: formulação e implementação da modernidade na gestão pública  

Como um trabalho em processo, a formação e a atuação do grupo formador do futuro DCR passa necessariamente, antes da sua criação, por instituições, espaços de convivência social e publicações diversas. Esse trabalho em processo permite a busca do conhecimento das relações entre Cultura (estéticas do Modernismo), valorização da ciência (pesquisas e criações de pessoas e instituições nas áreas de Exatas, Humanas e Sociais) e Ética (Política), determinante para o DCR.  

A elucidação desse aprendizado dos jovens intelectuais em direção ao trabalho na Prefeitura de São Paulo se dá pelo levantamento e estudo de documentos em que eles são autores, interlocutores ou mesmo citados. Assim ocorre com cartas, jornais e revistas como a Revista do Arquivo Municipal (RAM). 

A RAM, em seus primeiros números, já tem a cidade como um problema. Há o desaparecimento da São Paulo Antiga que busca suas raízes nas marcas indígenas, africanas e bandeirantes. A RAM documenta a construção de um sentimento de paulistanidade que se dá entre as revoluções separatistas, o bandeirantismo e um desejo de construir um projeto de nação a partir do modernismo.  

A RAM apresenta em seu primeiro ano, com periodicidade mensal, uma notável homogeneidade em seu projeto editorial, seja pelas temáticas e suas abordagens, seja pelo empenho em difundir documentos institucionais e históricos, seja pela disponibilidade em se abrir como espaço de exposição e interlocução de diferentes instituições e intelectuais.  

Por meio da RAM é possível identificar, entre os intelectuais que nela contribuíram, debates e disputas por configurações de campos científicos em construção,  por narrativas e projetos de modernidade e de modernização que terão desdobramentos na política cultural e educativa colocada em curso pelo DCR (Claro, 2008) 

Antes mesmo do surgimento do DCR em maio de 1935, os primeiros doze números da RAM (entre junho de 1934 a maio de 1935) evidenciam sua potencialidade como não só difusora mas como indutora de um pensamento que buscava a renovação do campo artístico, ético e científico. A RAM também revela as hierarquizações entre os intelectuais que, em seus respectivos campos de conhecimento, participam de maneira mais ou menos ativa do modernismo transfigurado em pressupostos de uma política pública de cultura e educação. 

 

A RAM e o novo governo da cidade 

A análise dos primeiros doze números da RAM, além de outros aspectos são reveladores  dos atos oficiais da municipalidade em direção a um novo modo de gerir a cidade. Sua leitura nos anunciam as  pesquisas antropológicas e demográficas da seção de documentos (posteriormente chamada de Documentação Social) no período do DCR. Toda essa complexidade se dá em meio aos detalhes sobre o papel das instituições de pesquisa fundadoras dos diferentes campos científicos que se apresentam e se constroem no período, além do destaque para personalidades e autores que já aparecem na cena intelectual paulista e que serão peças chave para o DCR. Deste modo, a nossa leitura da RAM também é a leitura do processo de institucionalização do governo municipal, lugar de toda a ação pioneira e revolucionária do DCR dirigido por Mário de Andrade. 

A edição 12 da Revista faz um balanço do trabalho realizado até ali, como uma primeira etapa preparatória dos caminhos a serem seguidos pela futura direção do DCR, sob o comando de Mário de Andrade. Auspiciava-se para o Arquivo Municipal e sua revista uma nova fase decorrente da criação do DCR.  A RAM, em seu primeiro ano de existência, anuncia, registra e ao mesmo tempo prepara um novo governo da cidade. Na capa da edição 13 da RAM a vinculação ao novo Departamento já aparece estampada indicando seu segundo ano com a direção de Mário de Andrade e o papel de secretário exercido por Sergio Milliet.  A RAM, antes mesmo da criação do DCR, evidencia as características próprias da futura administração da cultura com a preocupação quanto ao patrimônio edificado na presença de obras de J. W. Rodrigues no resgate do passado colonial e no esforço de constituir uma arqueologia brasileira, além da menção à participação das construções de Tebas na configuração da cidade em transformação (volume 14, p. 29).  

A edição de número 15 registra e destaca a criação da Escola Livre de Sociologia e Política de São Paulo em 1933. Tratava-se da criação de um instituto de ensino superior para uma elite “numerosa” e “disciplinada” formando quadros técnicos e administrativos para a gestão pública. Apresenta-se como uma escola essencialmente prática de ciência aplicada com enfoque em métodos de trabalho burocrático.  

Uma das primeiras iniciativas dessa escola foi o Inquérito sobre o Padrão de Vida dos Operários de São Paulo, seguido de investigações sobre a população imigrante de maneira mais específica. Os desafios em torno da urbanização aparecem em estudos sobre o abastecimento de água e de alimentos, bem como a projeção de crescimento populacional em São Paulo, sobretudo por força da imigração. 

A partir da 18ª. Edição as capas apresentam desenhos e reproduções de obras de artistas de famílias imigrantes que formarão o Grupo Santa Helena. Em sua maioria esses artisas eram egressos da Escola Profissional Masculina do Brás ou do Liceu de Artes e Ofícios. Isso revela que o DCR estava acompanhando atentamente a cena cultural e artística paulista protagonizada no segundo modernismo por artistas de origem operária.  

 

Formação e atuação dos quadros técnicos e administrativos  da gestão pública: de Cassiano Ricardo a Nuto Sant”anna 

Com a saída de Mário de Andrade do DCR e da RAM entre 1937 e 1938, é interessante notar no número 47 de maio de 1938, a presença de um texto de Cassiano Ricardo e outros três seguidos de Arthur Ramos. Todos esses textos versando sobre os negros no Brasil foram publicados em comemoração ao cincoentenário da abolição da escravatura.  

Durante o Estado Novo (1937-1945), Cassiano Ricardo ocupou diversos postos importantes, dirigindo o Departamento Estadual de Imprensa e Propaganda de São Paulo, órgão de propaganda do governo federal. Também assumiu a chefia do Departamento Político Cultural da Rádio Nacional, que transmitia crônicas culturais e de interesse nacional diariamente, frequentemente assinadas pelo autor (Joanoni Neto, 2017). 

Por sua vez, Arthur Ramos se destacava já nesse período como um dos principais africanistas brasileiros defendendo que o  racismo  seria mais uma ameaça  que  rondava  o  Brasil do que algo estrutural em sua trajetória. Arthur Ramos foi identificado posteriormente como alguém que compreendeu a questão racial no Brasil de maneira limitada aos preceitos conservadores de sua época pautados pelo mito da democracia racial (Tamano, 2013). 

Percebe-se que a saída de Mário do DCR provocou uma guinada conservadora por meio de lideranças intelectuais e administrativas identificadas de maneira ampla e difusa ao modernismo.  A chegada do grupo articulado por Mário de Andrade e sua breve passagem pelo DCR revelam pontos de inflexão, continuidades e descontinuidades em relação ao projeto modernista de gestão pública,  permeado de contradições, avanços e recuos.  

Destaca-se, nesse sentido, a figura de Nuto SantAanna , articulador de intensas críticas aos modernistas nos anos 1920 mas que será elemento fundamental para o DCR e também para a RAM em diversos momentos.  Escritor, jornalista e historiador, Nuto Sant’Anna teve papel central na gestão da cultura como Chefe da Sub-Divisão de Documentação Histórica, encarregado da Secção Histórica da Prefeitura de São Paulo e Secretário do Departamento em momentos distintos. Aparece como primeiro secretário da RAM entre 1934 à 1935, atuando respectivamente entre às edições 1 à 14, retornando novamente entre 1944 à 1950. Publicou textos em diversas edições da RAM abordando temáticas como história do Arquivo Municipal, história de São Paulo, transcrição de documentos, biografias e datas comemorativas (Claro, 2008, Governo Da Cidade De SP, 2024) 

 

Considerações finais 

O núcleo de intelectuais integrantes do DCR em construção não só reuniu pessoas afinadas com o pensamento modernista, mas foi capaz de construir um trabalho que envolveu pesquisadores de ciência, educação e humanidades, fundando  uma nova forma de pensar e fazer a política pública. 

Um novo governo da cidade foi possível a partir de uma administração que, sustentada no binômio cultura/educação, foi capaz de conhecer o mundo dos operários, os imperativos do crescimento econômico e urbano a partir de pressupostos de cientificidade amparados em instituições como a Sociedade de Sociologia. 

O trabalho desenvolvido pelo DCR e que se encontra registrado na RAM  foi apresentado como a encarnação do moderno, o que não implica na ausência de contradições pois se trata de uma modernização conservadora como forma de superação do atraso.  

Com a chegada do Estado Novo em 1937 e a  nomeação de Prestes Maia para substituir o prefeito Fábio Prado, Mário de Andrade seria o primeiro diretor a ser demitido do DCR. Digamos que a demissão de Mário de Andrade e a relativa desarticulação do DCR era uma tragédia anunciada num país pouco afeito às políticas emancipatórias de educação e cultura. Fecha-se, assim, um ciclo em que esperanças e iniciativas promissoras dão lugar a uma retomada centralista e ditatorial atravessada por perspectivas modernistas que foram forjadas num contexto conservador e a ele sobreviveram.  

A RAM expressa e registra as clivagens de natureza política e cultural, sendo importante documento para entender a dinâmica da cena paulista em meio aos desdobramentos da Revolução de 1932, das mudanças decorrentes da instauração do Estado Novo, no reconhecimento dos artistas operários para o que se configurará como segundo modernismo e na formação de quadros para a gestão pública tendo o grupo de Mário de Andrade como epicentro. Figuras como Cassiano Ricardo, Arthur Ramos e Nuto Sant’Anna demonstram proximidades e distanciamentos desse projeto modernista. 

 

 

RUBENS BORBA DE MORAES E OS IDEAIS DE FORMAÇÃO PARA A ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DA CIDADE DE SÃO PAULO   

Alessandra Francolino Sardinha
Fernanda Ferreira Boschini
Carla Cristina Fernandes Souto

Introdução 

Este artigo surgiu no âmbito das pesquisas do Projeto CNPq Cultura/Educação, Ciência e Ética na Práxis Intelectual do Segundo Momento Modernista4. A partir de suas percepções iniciais, o estudo tem como propósito compreender o desenvolvimento de um grupo de intelectuais modernistas paulistas no período compreendido após a Semana de Arte Moderna de 1922 e a criação do Departamento de Cultura na cidade de São Paulo em 1935, este liderado até o ano de 1938 pelo escritor e administrador público Mário de Andrade, em um projeto original e inovador como um “serviço público educativo-cultural” (Alves, 2022, p.11). 

Particularmente, esse texto se aprofunda nas publicações de um destes intelectuais - Rubens Borba de Moraes, que participou da elaboração de diversas revistas modernistas, como a Klaxon e Revista de Antropofagia. Além destas, escreveu para o jornal Diário Nacional e foi também secretário da Revista do Arquivo Municipal (RAM) entre os anos de 1943 e 1944 (Claro, 2008). No Departamento de Cultura, foi diretor do Departamento de Bibliotecas.  

Rubens Borba de Moraes nasceu em 23 de janeiro de 1899 na cidade de Araraquara, no Estado de São Paulo, foi um bibliófilo e bibliotecário brasileiro. Foi descrito por Mindlin como “Um homem de grande cultura, conhecedor infatigável leitor dos mais diversos temas” (1998, p.109). Além disso, dedicou-se à escrita e a organização de livros, sendo considerado “o verdadeiro introdutor da biblioteconomia no Brasil” (Mindlin, 1998). 

O objetivo deste artigo é estabelecer uma ligação entre os textos publicados por Rubens Borba de Moraes entre 1920 e 1930, em alguns veículos modernistas e os textos e entrevistas concedidas por ele posteriormente, entre 1970 e 1982, de modo a observar se os ideais que o nortearam já estavam explícitos em suas publicações no período de entusiasmo modernista e de acordo com o que ele proferiu anos depois. Além disso, acredita-se que foram essas ideias que o levaram a atuar no cenário político – administrativo paulista. Para isso, foram analisadas as publicações obtidas por meio da Plataforma de Estudos do Primeiro Modernismo Literário Brasileiro5 . 

 

Rubens Borba de Moraes: Aspectos de formação. 

Segundo Antônio Candido (2006), a grande ambiguidade da nação brasileira era ser formada por povos de culturas consideradas primitivas, no contexto da época, em comparação aos povos europeus que também a constituíam. Desse modo, a população nativa possuía herança cultural europeia, mas era etnicamente mestiça e buscava “europeizar” o cidadão. Essa visão fez com que muitos dos intelectuais de origem abastada fossem completar seus estudos em outro continente, e isso foi o que ocorreu na formação de Rubens Borba de Moraes. “Não era só um fenômeno social e intelectual, era um fenômeno econômico também: estudar no Brasil custava muito.” (Moraes, [1982] 1999, p. 99). 

Por ter estudado grande parte da vida na Europa, Rubens Borba de Moraes foi educado a partir das referências estrangeiras, e em relato menciona algumas de suas experiências: “Lembro-me de aulas em que dormia: por exemplo, um curso sobre Boileau, que não acabava mais. [...] segui cursos com Claparède, segui cursos de Pitard, sobre antropologia, e um curso admirável sobre Nietsche” (Moraes, 1979, p. 162). Retornou ao Brasil com diversas referências políticas francesas, entre elas: Apollinaire, Proust, Cocteau, Max Jacob e Blaise Cendrars e Romain Rolland (Matos, 2011). Além disso, há um histórico de participações em grupos políticos como o grupo Clarté e uma posição favorável e entusiasmada com a tomada do poder por Lenine6 [após a vitória da revolução bolchevique, na Rússia] (Moraes, 1979). Leu sozinho e em conjunto com os integrantes do grupo autores brasileiros como: Varnhagen, Taunay Simão de Vasconcelos e Rocha Pita, mas disse que os achava antiquados (Moraes, 1999). 

Rubens Borba de Moraes diz que seus ideais vieram da Europa, especialmente da França, e que intermediava a divulgação do Modernismo para os colegas que estavam no Brasil. Quando chegou em São Paulo em 1919, procurou por Mário de Andrade, pois suas famílias tinham relações, reatando assim a própria amizade com o escritor. (Moraes, 1976, p. 159). Diz que na época de seu retorno convivia com Mário e Oswald de Andrade, mas que mesmo assim não tinham proximidade com a literatura moderna francesa. “Explica-se: no Brasil, naquela época, não havia ninguém — eu insisto nesse ninguém — que estivesse lendo a literatura moderníssima francesa.” (Moraes, 1976, p. 159) 

Para demonstrar a importância da Cultura Francesa em seu cotidiano e como a Europa era vista com admiração pelas famílias brasileiras, em texto publicado na revista Movimento Brasileiro, Rubens Borba de Moraes relata sobre seu primo João, que voltou encantado após uma viagem e falando francês “A propósito de tudo, do menor caso, o primo João espetava o dedo e exclamava: "Em Paris... na Orópa”. Depois, elle socegou” 7 (Moraes, 1926, p.3). 

Entende-se que um fator decisivo para compreensão das ideias que nortearam Rubens Borba de Moraes e seus companheiros parte da análise da formação intelectual dos modernistas. Neste contexto, segundo Mindlin (1998, p. 109) ele “descendia de velhos troncos paulistas, que remontam a Borba Gato” que viam os seus antecedentes e os paulistas, de modo geral, como desbravadores. É possível notar essas questões nos trechos da escrita de Matos (2011): “Seus orgulhos genealógicos [de Rubens] confundem-se com a construção da imagem dos paulistas desbravadores e progressistas” e completa: “[...] Gente que mandava e não era mandada”, que vivia, com orgulho, no que era seu, “como barões da Idade Média em seus feudos”, a classe dos “paulistas de quatrocentos anos.” (Matos, 2011, p. 152). 

Em entrevista publicada em 1999, Rubens afirma que os feitos modernistas se realizaram “sem teorias e com pouca teoria” (Moraes, 1999, p. 109). Todavia, todos tiveram uma formação completa, com leituras em diversos idiomas, sendo possível afirmar que Rubens e grupo modernista tinham contato com uma variada gama de autores e conceitos, o que indica o acesso à ciência na educação/formação do grupo. 

 

Modernismo e nacionalismo 

De acordo com Sérgio Buarque de Holanda (1936), o Modernismo configurou um movimento nacionalista, pois estaria desde sua gênese ligado ao olhar para o interior do Brasil. Em diversas situações, até mesmo em abordagens pedagógicas, o movimento é estudado com semelhante viés. Rubens Borba de Moraes expõe que a ideia modernista era atualizar o Brasil, como observado na declaração “Nós, como o caboclo “tacamos fogo na mattaria” porque não se planta sem derrubar.” (Moraes, 1922, p. 17), assim como colocar o país a par das tendências que vivenciava na Europa.  

Ao ser internacionalista e escrever para o público alfabetizado, Rubens Borba de Moraes selecionava muito bem os leitores, já que a maior parte do povo brasileiro era analfabeto, cerca de 71,2% da população (Gil, 2022). Em contrapartida, o intelectual afirmou que "Não se tem idéia hoje de como o francês era divulgado no Brasil. Até garçom de café falava francês" (Moraes, 1976, p. 159) o que demonstra uma visão elitizada dentro de seu contexto social, pois muitos dos intelectuais pertenciam às classes mais abastadas. 

 Entretanto, em texto publicado na revista Correio Braziliense, em 1970, Rubens afirma que muitos historiadores pintam o Movimento Modernista como nacionalista, sendo que, para ele, os idealizadores consideravam-se internacionalistas. Ao citar a revista Klaxon, diz: “Quisemos até fazer da revista um órgão internacional, publicando artigos e poemas em francês, em italiano e em espanhol. Nela, colaboraram escritores belgas, franceses, suíços, italianos, espanhóis etc.” (Moraes, 1970, p. 2). E reitera a colocação, ao dizer que ele e os colegas modernistas queriam que o país marchasse juntamente com as ideias e realizações internacionais. “Não queríamos que o Brasil continuasse fora do movimento. O que desejávamos era modernizar o Brasil. Essa era a nossa luta. Discutíamos muito nesse sentido” (Moraes, 1970, p. 3).  

Em 1982, Rubens Borba de Moraes explica de qual maneira poderiam ser considerados nacionalistas, sustentado no fato de que o interesse pela cultura os fez estudar o passado. Quando perguntado se, à época, não existia a preocupação de voltar às raízes brasileiras, Rubens responde que isso veio somente depois, durante a semana de 22, quando todos começaram a estudar. “Comecei a comprar livros velhos, livros antigos; daí veio a minha bibliofilia. [...] Eu fui ler tudo o que eu pude de história, de livro antigo, de manuscrito. [...] De maneira que houve um ímpeto geral muito grande para estudar as fontes e reler o Brasil” (Moraes, [1982] 1999, p. 99).  

Ao mencionar os feitos modernistas, Rubens Borba de Moraes sempre coloca em posição o “querer fazer” independente do governo vigente, pois aponta a política como subsídio, mas não como a motivação das transformações. Ademais, visa sempre desassociar os modernistas de ideologias políticas. É possível identificar esse ideal quando questionado em uma de suas entrevistas sobre a atuação em um governo no qual se opunham, Rubens rebate: "Não me interessa quem está no governo, me interessa que o que eu quero fazer são as bibliotecas no Brasil. É isso que me interessa. Agora, se este governo quer fazer isto, eu sou um técnico a serviço dele." (Moraes, 1999, p. 107) E completa que Mário de Andrade pensava da mesma maneira “Mas nós não estávamos servindo a um governo; nós estávamos servindo a uma ideia, a uma cultura, a uma coisa superior a governo” (Moraes, 1999, p. 107).  

Rubens também coloca os políticos como patrocinadores e possibilitadores da execução das ideias: “Eu queria, como nós todos, me servir da política para realizar nossas idéias. E nós conseguíamos apoio.” (Moraes, 1999, p. 107). Contudo, com tantos impasses políticos, o modernista, já não tão jovem, se cansa e decide ir novamente para o exterior. E diz: “Então falei: — "Não tem mais remédio neste país, né? A política intervém em tudo” (Moraes, 1999, p. 107). 

Alguns anos após a Semana de Arte Moderna, Rubens Borba de Moraes expõe certo orgulho das tentativas de atualizar o Brasil ao continuar a história do primo João, como se após algum tempo, o país estivesse devidamente atualizado. “Hoje, elle não conta mais casos de bigode e chapéu côco, passados em Paris. Quando se comenta o Brasil, elle não espeta o dedo e conta cousas da Europa. Não compara mais a Europa e o Brașil.”8 (Moraes, 1926, p. 3). Pode-se afirmar, portanto, pela interpretação de Rubens, que o sentimento nacionalista projetado sobre o Modernismo não era algo pensado, mas sim algo que surgiu nas tentativas de atualizar os colegas sobre os ideais surgidos na França, os colocando em uma óptica brasileira (Moraes, 1999).  

 

Considerações Finais 

Por ter vivido mais tempo do que seus companheiros, Rubens Borba de Moraes (1889-1986) deixou contribuições fundamentais a respeito do primeiro e do segundo momentos modernistas, ao mostrar que os intelectuais não vieram com ideais prontos e estáticos, e sim com ideias que foram se modificando no decorrer do tempo, da formação educacional e das vivências que surgiram. Além disso, apesar de carregarem valores de um movimento cultural projetado para o povo, muitos dos intelectuais eram provenientes de uma classe privilegiada. Nesta perspectiva, torna-se importante salientar que a visão de Rubens e de outras figuras modernistas não pode desconsiderar o contexto político e social da época analisada. 

A partir dos textos publicados no período modernista, pode-se identificar, de maneira explícita ou implícita, juntamente com as narrativas relatadas por Rubens Borba de Moraes em suas entrevistas posteriores, importantes aspectos da educação e da formação dos ideais deste intelectual (por meio da cultura, da educação, da ciência e da ética), o que possibilitou a construção de um pensamento que induziu a práxis de seu trabalho desenvolvido na gestão pública dentro do Departamento de Cultura de São Paulo, juntamente com o grupo responsável por sua administração entre os anos de 1935 e 1938. 

 

AS FOTOS DO PRIMEIRO ALBERGUE NOTURNO DE SÃO PAULO

João Gomes da Silva Filho

 

Durante o processo de pesquisa nos arquivos da atual sede da Associação Cívica Feminina (ACF) foi descoberto um importante acervo de fotografias referentes ao antigo Albergue Noturno de São Paulo. Ele é constituído por 19 fotografias em preto-e-branco, todas com as mesmas dimensões (18,5cm/24cm). Algumas apresentam uma breve descrição da cena retratada escrita à lápis no verso, datadas de 1957. Duas delas, no entanto, portam informações um pouco mais desenvolvidas e datilografadas.  

A pequena caixa na qual elas se encontravam preservou-as completamente da ação do tempo, no entanto, nenhuma classificação ou ordem permitiu de imediato saber para qual finalidade elas foram produzidas, se serviram finalmente a um propósito ou não. A este respeito, hoje, podemos apenas levantar algumas hipóteses. A mesma caixa continha também muitas outras fotografias, em datas, lugares e com objetivos certamente bastante diversos, versando principalmente sobre a atividade escolar e as comemorações do colégio Olga Ferraz. 

A Sociedade dos Albergues Noturnos de São Paulo foi fundada com o nome de “Sociedade Amiga dos Pobres e Encarcerados”, rapidamente restringido para “Sociedade Amiga dos Pobres”. No capítulo I de seus primeiros estatutos (de 27 de dezembro de 1902) ela era assim descrita:  

Art. 1º. A Sociedade Amiga dos Pobres é uma corporação beneficente, da qual pódem fazer parte, em numero illimitado, pessoas de ambos os sexos, de todas as nacionalidades, sem distinção de crenças politicas e religiosas, e terá sua séde na Capital do Estado de S. Paulo. 
Art. 2º. São seus fins: 
a) Dar asylo gratuito e temporário, durante a noite, a toda pessoa necessitada que casualmente não tiver domicilio, seja qual fôr o sexo a que pertença, o paiz donde venha e a religião que professe. 
b) Para a prompta execução do pensamento da Sociedade serão estabelecidos em bairros desta capital, proximos ao perimetro central, um ou mais Albergues Nocturnos, que funcionarão em casas alugadas, emquanto não houver edificio proprio. 

Por fim, no capítulo VI sobre as “Disposições Geraes” a linha ideológica de inspiração cívica e filantrópica esboçada acima é acentuada: 

Art. 37. A Sociedade manterá em seus estabelecimentos a mais ampla liberdade de consciência. Assim se em algum delles achar se qualquer pessoa prestes a morrere reclamar a presença do ministro da sua religião, dever-se-ha mandar chamal-o incontinenti. 
(...) 
Art. 39. A Sociedade não impõe os seus bons officios, mas, socorre àqueles que lh’os pedirem. 
Art. 40. Os socorros conferidos poderão ser: 
a) Abrigo durante uma ou mais noites. 
b) Recommendação dos asylados às auctoridades constituídas, aos particulares, aos donos de fabricas e ao commercio em geral para dar-lhes emprego. 
c) Vestuários, quando os necessitados tenham delle absoluta carência. 

Em 19 de março de 1906 passa a se chamar definitivamente “Sociedade dos Albergues Nocturnos” já possuindo neste ano um local definido, localizado, segundo os Estatutos, na rua Asdrúbal do Nascimento, 28, a qual, a partir da década de 20 se desdobrará em uma pequenina passagem com o nome de travessa Noschese, devido a instalação no local de uma fábrica de utensílios metálicos de mesmo nome. Esta casa era e foi durante décadas o único albergue noturno para os pobres em toda a cidade de São Paulo. 

A duração da Sociedade estava prevista para 30 anos, passando, portanto, em 1932 – coincidentemente, o mesmo ano da criação da ACF - a ser regida “pelos presentes estatutos e leis do País”. Somente em 1937, por decisão de sua assembleia, os Albergues Nocturnos passaram a ser dirigidos pela Associação Cívica Feminina, no entanto, desde o primeiro ano de existência desta última os contatos entre as duas instituições parecem ter sido frequentes, como nos mostra a existência de um exemplar dos estatutos da Sociedade de Albergues Nocturnos de 1933 nos arquivos da ACF contendo na capa uma referência manuscrita à Maria Thereza Nogueira de Azevedo como “Presidente da Associação Cívica Feminina” quando ela era neste ano a Diretora do Departamento Eleitoral da Associação. Acreditamos assim na possibilidade de um interesse por parte da ACF em incluir entre suas atividades a administração do albergue como consequência coerente dos objetivos estabelecidos em sua fundação, entre os quais se encontrava justamente o auxílio aos pobres e o controle das epidemias que afetavam principalmente as mulheres e as crianças. O período conturbado pelo qual a cidade e o Estado de São Paulo passaram entre 1932 e 1934 certamente contribuiu para o adiamento da anexação do albergue. 

Cabe dizer ainda que os seus estatutos permaneceram praticamente inalterados, salvo alguns detalhes específicos de atualização de sua administração e patrimônio. Alguns pontos, de outra ordem, nos chamaram a atenção pois denotam de modo mais evidente uma mudança sensível ao longo do tempo na maneira de se referir e de tratar os pobres e imigrantes da cidade, como por exemplo, o fato de que em 1933 já não existia mais o artigo 37 do capítulo VI citado logo acima a respeito da liberdade de consciência com o exemplo do moribundo, e em 1944 a expressão “dar asylo” havia sido substituída por “dar pousada” e incluiu-se um item sobre “manter um ambulatório médico gratuito, para atender aos albergados, ou a quem lhe solicite assistência” e todos os artigos finais, contidos nas “Disposições Geraes” e que possuíam um caráter moral pronunciado já haviam sido todos substituídos em 1944 por artigos muito mais objetivos ligados ao funcionamento interno, às formas de arrecadação e administração de doações, assim como à extensão dos poderes da assembleia e da direção central da ACF1

O vocabulário se atenua e as práticas se reorganizam. O espírito que direcionou a criação dos Albergues Nocturnos no início do século XX como uma sociedade civil, apartada dos poderes públicos, equilibrava-se entre duas tendências distintas herdadas do fim da escravidão e da Proclamação da República, isto é, a forma inspirada pelas antigas associações de socorro mútuo religiosas e os procedimentos de triagem e encaminhamento próximos daqueles empregados na recepção dos imigrantes europeus. A situação do pobre, do mendigo, do indigente se agravou e muito. Não porque, como os jornais da época faziam parecer, eles teriam ou surgido do nada ou aumentado em número considerável, mas devido a crescente precarização do trabalho urbano, da quebra das antigas solidariedades locais diante do crescimento das cidades e da dificuldade de circulação imposta pelos governos. O fenômeno da miséria não apenas dos negros alforriados ou já livres incluía também os brancos pobres no Brasil há muito tempo. Como assinalou Laura de Mello e Souza, 

À perplexidade do homem livre pobre e constantemente desclassificado, a camada dominante opôs um corpo bastante organizado de formulações, cujas raízes lançam seus frutos ainda hoje, pois foram incorporadas e reelaboradas pela nossa tradição autoritária. Em síntese, a camada dos homens pobres era tida como uma outra humanidade, inviável, pela sua indolência, pela sua ignorância, pelos seus vícios, pela mestiçagem ou pela cor negra de sua pele; habitantes de uma terra rica e farta, esses homens nada faziam para dela conseguir frutos: preferiam viver de expedientes e de esmolas, descurando do futuro, repudiando as formas permanentes da atividade econômica e abraçando um modo de vida itinerante e imprevidente.2

A história do único albergue noturno de São Paulo acompanhou passo a passo as transformações sociais dos miseráveis no Brasil, posto que ele recebia pessoas de todas as regiões do país e do exterior. Acompanhou, ora alinhado ora resistente, principalmente sob a direção da ACF, as principais decisões estatais de cunho policial, higienista, segregacionista ou psicopatológicas. E de fato a cidade e o Estado não se mostravam muito acolhedores. 

Uma legislação específica existe desde 1928 em São Paulo, quando um decreto policial foi promulgado em 17 de abril: “da custódia dos mendigos, viciosos, ébrios, loucos furiosos e turbulentos”3. Em 24 de dezembro – não por acaso véspera de Natal – de 1935 outra lei, incluída na organização do Departamento de Assistência Social do Estado tratava agora do “serviço de proteção aos desvalidos”4

Nos parece bastante evidente que a despeito das legislações a sua aplicação era dificultada pela carência imediata de espaços disponíveis para receber e tratar os pobres na cidade, dependendo assim, ainda, das antigas instituições filantrópicas entre as quais se encontrava o Albergue Noturno. O enquadramento institucional da mendicância – termo genérico que recobria toda e qualquer pessoa não domiciliada, desempregada, em situação de indigência ou desamparo – era feito exclusivamente pela abordagem policial e secundariamente, pela médica, encarregada da separação entre sãos e “loucos”. Por vezes sobrepunham-se estigmas em um mesmo indivíduo, como miserável, criminoso e louco. 

A missão do Albergue Noturno era outra, mas muito dificilmente ele conseguia escapar das interferências municipais e estatais. O número extremamente limitado de leitos e de pessoal, o casarão térreo onde se encontrava, com pouco espaço para responder aos objetivos e à demanda tornavam o trabalho quase impossível. As longas e demoradas filas de espera, noturnas, no frio de São Paulo na primeira metade do século XX, registradas nas fotos do acervo, revelam na face de cada homem o efeito de um processo moroso ritmado pelos seus passos, um arrastar de pés, pelo empurrar de uma mala ou de uma trouxa de pertences, pela luta contra o sono. Muitos sem dúvida não encontravam abrigo em um lugar que não dispunha de mais de duzentos leitos. Em uma das fotos podemos contar mais de cinquenta homens. São os que couberam no quadro. Devemos imaginar os invisíveis, fora de quadro, que não escaparam nesta ocasião de se encontrarem, ali também, ao relento da imagem. 

Tomando-se por base o que nos diz o estatuto e as próprias fotos fica evidente a diferença entre a postura e o público atendido pelos antigos albergues e os de hoje, voltados para a população sem teto, moradores de rua, mendigos. A imagem das pessoas retratadas em 57 não nos permitem afirmar que sejam todos moradores de rua a procura de um lugar seguro para pernoitar. Encontram-se entre eles ainda trabalhadores pobres recém-chegados ou já na cidade, brasileiros e estrangeiros, há algum tempo vivendo de pequenos serviços diários. Muitas mulheres foram retratadas, a maioria com filhos. Como existia uma separação de corpos no espaço do albergue é difícil dizer se elas teriam chegado acompanhadas por um cônjuge ou companheiro, ou sozinhas. É flagrante a importância documental deste acervo, posto que são extremamente raras imagens tão próximas e de tão boa qualidade da vida cotidiana dos mais miseráveis da cidade de São Paulo na primeira metade do século XX, tratados mais comumente como elementos indesejáveis e invisíveis, historicamente desinteressantes e irrelevantes e comumente perigosos. 

Tais fotos podem ter sido tiradas, portanto, três anos depois das comemorações do IV Centenário (1954), uma data que marcou definitivamente a memória da cidade assim como reestruturou urbanisticamente todo o centro histórico e suas imediações até o Parque do Ibirapuera. Já em 1951 a ACF havia enviado uma carta à Câmara Municipal, assinada pela diretora responsável Maria Eudoxia Leme, solicitando a construção de um novo albergue na qual a relação com as festividades é explicitada. A carta de 1951 evidentemente buscava recolher a simpatia dos vereadores aproveitando-se do entusiasmo que envolvia os planos para 1954, mas de modo imprevisto acabara por explicitar uma necessidade social advinda das próprias obras de reestruturação da cidade. 

Assim, entre a data de fundação da Sociedade dos Albergues Noturnos e a data das fotos encontradas existe um longo e doloroso arco de tempo para a população pobre da cidade e para os imigrantes que para cá se dirigiram, como mostram algumas das imagens. Elas representam o post festum do entusiasmo modernizador paulistano ao mesmo tempo em que parecem responder à imagem degradante veiculada pela imprensa na década de 50 e já profundamente arraigada no imaginário da população de São Paulo. Foi sem dúvida essa principal motivação para a produção destas fotos, um tanto romantizadas, hesitando entre a fotografia documentária ou jornalística de inspiração Cartier-Bresson e a fotografia humanista que ganhou força no pós-guerra, bem representadas por Walker Evans, Paul Strand e principalmente August Sander. As fotos nos parecem comprometidas, além disso, com algo bastante importante, ou seja, a contraporem-se ao discurso corrente que desacreditava toda a obra empreendida pela Sociedade dos Albergues Noturnos e principalmente pela Associação Cívica Feminina que almejava nesta época a ampliação de suas funções assistenciais. Deste modo, questões estéticas se misturam às questões de ordem política e propagandística. A estrutura física e os equipamentos precários de assistência presentes no albergue, mas principalmente as pessoas que dependiam dele, foram retratados sob a perspectiva muito humana, mas que oscilava entre o registro documental de uma dura evidência, imediatamente visível, e o de uma preservação da dignidade de pessoas que se viam já muito aviltadas pela mídia popular. Oscilava-se entre a imagem humanista da pessoa e o retrato do próprio humanismo da instituição.  

Fora o que foi dito acima não há nenhum outro indício que nos permita dizer se estas fotos foram utilizadas ou não. Talvez devessem servir para reforçar o argumento da ACF junto à Câmara Municipal, no entanto, ao que nos parece, isso pode não ter acontecido, já que não encontramos traços nos autos que as mencionassem. Desta forma os homens, mulheres e crianças retratados de modo dócil e disciplinado foram reencaminhados para a invisibilidade da qual eles não conseguiam sair, sem se revelarem – também no sentido fotográfico – aos olhos do poder público ou da população que tinha deles a imagem carregada da imprensa. É esta a grande dificuldade que estes rostos nos propõem, a de entrevê-los neste jogo de imagens construídas sobre eles, mas não deles. 

1. O exemplar de 1944 possui a assinatura reconhecida em cartório da então presidente/diretora Olga Ferraz Pereira Pinto e os carimbos de três cartórios diferentes para a reinscrição dos mesmos estatutos em 27 de junho de 1969.
2. L. de MELLO E SOUZA, Desclassificados do Ouro. A Pobreza Mineira no Século XVIII, Rio de Janeiro, Graal, 1990 [1982], p. 219
3. Citado por M.-G. STOFFELS, Os Mendigos na Cidade de São Paulo, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1977, p. 103.
4. Idem, p. 104.

Imagem 1_entrada do Albergue Noturno - João Gomes
Imagem 2_interior organizado do Albergue Noturno - João Gomes
Imagem 3_ a fila das mulheres e crianças - João Gomes
Imagem 4_Um senhor a espera de atendimento - João Gomes
Imagem 5_ Mãe e filha acolhidas - João Gomes

 

Referências

 

  • A Revista do Arquivo Municipal e o Governo da Cidade: Continuidades e Descontinuidades do Projeto Modernista

ALVES, Luiz. Administrar via cultura: (revolução cultural-educativa na ex-pauliceia desvairada, 1935-1938). São Paulo, Alameda, 2022. 

BOSI, Alfredo. A dialética da colonização. São Paulo: Companhia das Letras, 1993  

CLARO, Silene Ferreira. REVISTA DO ARQUIVO MUNICIPAL DE SÃO PAULO: um espaço científico e cultural esquecido: (proposta inicial e as mudanças na trajetória – 1934-1950). 2008. 359 f. Tese (Doutorado) – Curso de História Social, Departamento de História, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2008. 

DUPAS, Gilberto. Economia Global e Exclusão Social. Pobreza, Emprego, Estado e o Futuro do Capitalismo. São Paulo, Editora Paz e Terra, 1999. 

FERNANDES,Florestan. o desafio  Educacional. SãoPaulo:   Cortez&EditoresAssociados,1989. 

FURTADO, Celso. Que somos? Sete teses sobre a cultura brasileira. Revista do Brasil. Rio de Janeiro: Governo do Estado do Rio de Janeiro, Secretaria de Ciência e Cultura, ano 1, no 2, 1984. 

GOVERNO DA CIDADE DE SÃO PAULO. Revista do Arquivo Municipal. Disponível em: https://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/cultura/arquivo_historico/publicacoes/index.php?p=8312. Acesso em 10 jul.  2024 

______. Biografia do Patrono Nuto Sant’anna. Disponível em: <https://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/cultura/bibliotecas/bibliotecas_bairro/bibliotecas_m_z/nutosantanna/index.php?p=186>. Acesso em: 10 jul. 2024 

JOANONI NETO, Vitale. Cassiano Ricardo e as várias formas do mesmo. Martim Cererê, Marcha para Oeste e as releituras do Brasil entre 1928 e 1970.Disponível em: https://www.snh2017.anpuh.org/resources/anais/54/1488848027_ARQUIVO_ArtigoCassianoRicardo.pdf. Acesso em: 09 jul. 2024 

PRADO JR. Caio. Evolução Política do Brasil e outros trabalhos. 5.ed. São Paulo: Editora Brasiliense, 1966. 

TAMANO, Luana Tieko Omena. O pensamento e atuação de Arthur Ramos frente ao racismo nos decênios de 1930 e 1940. Revista Crítica Histórica, 4(8).. Disponível em: https://www.seer.ufal.br/index.php/criticahistorica/article/view/2930. Acesso em: 09 jul 2024 

  • Rubens Borba de Moraes e os Ideais de Formação para a Administração Pública da Cidade de São Paulo

ALVES, Luiz Roberto. Administrar via cultura: revolução educativo-cultural na ex-paulicéia desvairada. São Paulo: Alameda, 2022. 

CANDIDO, Antonio. Literatura e Sociedade. 9. ed. Rio de Janeiro: Ouro sobre azul, 2006. 

CLARO, Silene Ferreira. Revista do Arquivo Municipal de São Paulo: um espaço científico e cultural esquecido (proposta inicial e as mudanças na trajetória - 1934-1950). 2008. Tese (Doutorado em História Social) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2008. Disponível em: https://teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8138/tde-09022009-164245/pt-br.php. Acesso em: 12 de julho de 2024. 

GIL, Natália. Analfabetismo da população brasileira nas análises de Giorgio Mortara sobre o censo de 1940. Revista Brasileira De Estudos De População, Porto Alegre: v. 39, p. 1–15. Disponível em: https://rebep.org.br/revista/article/view/2059. Acesso em: 01 set. 2023. 

HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. São Paulo: companhia das letras, 1997. 

MATOS, F. Rubens Borba de Moraes: recordações de um modernista quatrocentão. Revista Catarinense de História [on-line], Florianópolis, n.19, p.151-155, 2011. 

MINDLIN, José. Rubens Borba de Moraes: um intelectual incomum. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, Brasília, v.79, n. 192, p. 108-111, maio/ago. 1998. DOI: https://doi.org/10.24109/2176-6681.rbep.79i192.1035. Disponível em: http://rbep.inep.gov.br/ojs3/index.php/rbep/article/view/1237. Acesso em: 28 jun. 2023. 

MORAES, Rubens Borba de. Balanço de Fim de Século, Klaxon: mensário de arte moderna. São Paulo: n.4, p.16-17, ago. 1922. Disponível em: https://digital.bbm.usp.br/handle/bbm/6074. Acesso em: 28 jun. 2023. 

MORAES, Rubens Borba de. Cultura e política: uma conversa com Rubens Borba de Moraes. [Entrevista concedida a] Marco Aurélio A. de Filgueiras Gomes. Revista de Urbanismo e Arquitetura, Salvador: v.5, p. 96-109, 1999. Disponível em: https://digital.bbm.usp.br/handle/bbm/7064. Acesso em: 30 ago. 2023. 

MORAES, Rubens Borba de. Recordações de um sobrevivente da Semana de Arte Moderna, Correio Braziliense. Distrito Federal: p.2-3, fev. 1970. Disponível em: https://digital.bbm.usp.br/handle/bbm/7064. Acesso em: 30 ago. 2023.