Secretaria Municipal de Cultura e Economia Criativa
Cidades - cultura e mercadoria
Fatos recentes envolvendo o Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico de São Paulo (Conpresp) colocam mais uma vez em oposição os conceitos de cultura de cidade e o de cidade-mercadoria. Para o segundo, o valor do solo urbano se mede por seu potencial construtivo. Para o primeiro, prevalece o conceito de urbanidade.
A proteção de área envoltória de bens culturais, com os quais a população se identifica, implica disciplina de uso do solo. Essas relações caracterizam o que se condicionou chamar mancha urbana, espaços livres e arborizados adotados pela população como pontos de encontro e convívio. Conserva-se para a comunidade o que é típico, e não o excepcional. Pode-se tratar apenas de uma vila (Vila Economizadora, no bairro da Luz, Vila Inglesa, da Rua Mauá, ou Vila Itororó, no bairro da Liberdade).
O passado, na verdade, é presente na cultura de um povo, valor a ser preservado para o futuro como legítimo patrimônio da comunidade. Tradições populares, como a festa da Achiropita, na Bela Vista, ou a de São Genaro, na Mooca, não podem perder sua ambientação.
Parques são seriamente afetados quando se reduz o número de horas de insolação e arejamento, apesar das edificações à sua volta serem comercializadas dada a sua “maravilhosa vista para o parque”.
E não são somente manchas urbanas. Cidades inteiras podem ser vítimas. Para Manuel Bandeira, “Ouro Preto é a cidade que não mudou e nisso reside seu incomparável encanto. Passada a época ardente da mineração (...) e a salvo do progresso desmudador pelas condições ingratas da situação topográfica, Ouro Preto conservou-se tal e qual”.
Imagine-se a área envoltória desse núcleo urbano tomada por lançamentos imobiliários. Seus arautos apregoando as virtudes de seu investimento: torres com magníficas vistas para o conjunto colonial, dotadas de fitness room, espaço zen, rest room, techno lounge, espaço gourmet - expressões que lembram a cantilena dos vendedores ambulantes (versão brasileira). Com a invasão de sua paisagem, a cidade ficaria reduzida a fundo de quintal, indigna de seu título de Patrimônio da Humanidade.
Esse mecanismo se tornou usual - a venda de vistas. Em todos os meios de divulgação comparecem primeiro fotos de amplas áreas verdes, exatamente as que virão a ser destruídas pelo empreendimento. Depois, as perspectivas enganosas feitas pelo computador, nas quais vemos top models em espreguiçadeiras à beira de piscinas. Como se constata, desenvolveu-se um verdadeiro comércio de valores virtuais, apto a competir com os filmes de ficção. A insolação, porém, não poderá ser iludida. O sombreamento recíproco dos edifícios significará perda de salubridade e o congestionamento de tráfego será agravado com novos veículos. Além do mais, o País estaria isento de contaminação da crise imobiliária que afeta a maior potência econômica mundial, com reflexo em todas as bolsas de valores? Quando há muitas declarações tranqüilizadoras, ninguém pode ficar tranqüilo.
Parques e jardins em São Paulo sempre encontraram defensores. O Parque da Aclimação tem história. Era o antigo Sítio do Tapanhoim. Carlos José Botelho, filho do conde do Pinhal e ex-secretário da Agricultura, ali fazia estudos de zootecnia. Inspirado no Jardin d’Acclimatation de Paris, batizou o parque com o mesmo nome, Aclimatação, posteriormente transformado em Aclimação.
No parque ali existente, animais vindos de outras regiões do globo eram aclimatados e expostos à visitação pública. Dado o seu inegável interesse cultural e de lazer, Prestes Maia, em sua gestão à frente da Prefeitura de São Paulo, desapropriou a área e a transformou em parque público. Sempre defendido por seus milhares de freqüentadores, e por sua solicitação, o parque foi, em 1986, tombado pelo Condephaat. Cumpre agora defender a área envoltória contra os avanços da especulação.
Também o Ipiranga, além de sua honrosa presença na primeira estrofe do Hino Nacional, tem muita história a contar. Quando se resolveu construir o monumento, hoje museu, para evocar o episódio maior da nacionalidade, a região era desabitada, como vemos nas antigas fotos. O arquiteto escolhido foi o italiano Tommaso Gaudenzio Bezzi. Vindo ao Brasil, em 1875, esse antigo herói das campanhas de Garibaldi realizou várias obras no Rio de Janeiro antes de vir a São Paulo. As obras tiveram início em 1882, com a colocação da pedra fundamental, transportada desde a Rua de São Bento até o alto do Ipiranga por 300 operários portando pás e picaretas enfeitadas. A execução da obra coube a outro arquiteto italiano, Luigi Pucci, profissional de elevada competência e iniciativa, como a instalação de uma máquina a vapor para a tração dos vagões destinados a transportar material da Estação da Luz até o canteiro de obras. Dada a distância do bairro, Pucci passou a residir na obra para ganhar tempo e melhor conduzir os trabalhos. Posteriormente, com sua visão de urbanista, Prestes Maia promoveu um rebaixamento de 14 metros do terreno à frente do museu, visando a criar uma perspectiva livre e valorizar a obra, ocasião em que criou um vistoso jardim inspirado nos congêneres que Le Nôtre criou em Versalhes.
Por vezes, é difícil convencer alguns setores de que importante não é apenas o potencial construtivo de um terreno. A ambientação de obras repletas de significado para uma nação deve prevalecer sobre interesses subalternos.
Em suma, o conceito de cultura da cidade se opõe ao de cidade-mercadoria.
Benedito Lima de Toledo, professor titular de História da Arquitetura da FAU-USP, é membro do Conselho Inter-nacional de Monumentos e Sítios (Icomos/Unesco) e da Academia Paulista de Letras
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